Ouve-se Le Cigne, de Saint-Saëns. O som abafado sai de dentro da bolsa. Paula busca o celular no compartimento apropriado, no bolso externo. Número desconhecido. Atende como de hábito: "Paula na escuta." A voz grave e pausada do interlocutor a instrui: "Pegue seu casaco, chaves do carro e sua bolsa. Você irá receber daqui a pouco, via SMS, coordenadas para colocar no GPS do carro. Siga-as." Paula não reconhece a voz e pergunta: "Quem é você?" Ouve apenas a respiração profunda do interlocutor. "Quem é você e porque eu obedeceria suas ordens?" fala Paula. Uma pausa prolongada. Paula percebe que o intelocutor sorve alguma bebida. "Não estou dando ordens... ainda... peço apenas que venha." A voz masculina transmite a calma da certeza de ser atendido. Paula hesita. Arfa. "Pois bem, me dê dez minutos para colocar os sapatos e pegar o casaco." Paula percebe que seu interlocutor desliga tão logo ela termina de falar.
Calça os sapatos de salto alto, pega o casaco preto que está atirado no sofá, revira a bolsa e confere se o spray de pimenta está lá dentro. Nunca se sabe o que pode acontecer. Faz um carinho em Arafat, seu gato persa cinzento, e coloca a ração no pote. "Filhote, não sei a que horas vou voltar." O gato se espreguiça e rodeia as pernas torneadas de sua dona, voltando para sua almofada. Paula confere se as janelas estão fechadas e acende o abajur junto ao sofá. Ao chegar a porta do apartamento dá uma olhada para a sala e sorri ao ver Arafat enroscado em sua caminha. O celular acusa o recebimento de um torpedo.
Paula se acomoda no banco do motorista, pega o celular e joga a bolsa no chão, do lado do passageiro. Vê as coordenadas recebidas e coloca-as no GPS. Liga o carro e sai da garagem. Liga o rádio e conecta seu pen-drive com músicas clássicas. Decide ouvir o Intermezzo de Manon Lescaut, de Puccini. Dirige calmamente seguindo as coordenadas do GPS e a música arrebata-lhe os pensamentos. A voz do seu interlocutor não lhe sai da cabeça. Ela vasculha a memória, buscando referências e não as encontra: "... peço apenas que venha." Ela já ouviu isso antes com a mesma modulação de voz, mas onde? Quem lhe disse isso? Em quais circunstâncias? Olha novamente para o GPS para conferir o caminho. Ela continua no rumo correto.
As coordenadas a levam para uma rua em subida, onde só se vê terrenos com grades e portões de ferro imensos, vez ou outra ela vislumbra uma casa no meio de bosques. A rua não tem o movimento frenético da cidade lá embaixo. Há uma tranquilidade assustadora, porém Paula confia em seus instintos e prossegue. O GPS avisa que ela chegou no destino. Há um grande portão de ferro e bronze trabalhado em volutas à sua frente. O terreno possui muros altos e se vislumbram copas de árvores altíssimas por detrás dos muros. Paula percebe as câmeras de segurança ao lado do portão, que se abre lentamente. Engata a primeira e entra na propriedade. Uma viela de paralelepípedos conduz ao casarão estilo francês do séc. XIX que fica no alto do terreno. Devagar, Paula dirige seu carro, passando por uma fonte bem cuidada e jardins tratados ao modo do racionalismo francês.
Estaciona o carro em frente à pesada porta dupla de cedro trabalhado. Mais câmeras de segurança. Ao saltar do carro, as portas abrem-se por controle remoto. Não há ninguém no imenso saguão com piso em mármore e granito, formando desenho de rosa-dos-ventos. Em frente há uma escadaria dupla em curva. Pilares de madeira escura sustentam bustos de bronze. Paula não reconhece nenhum deles. A voz do interlocutor se faz ouvir pelo sistema de som: "Suba a escada da direita e siga pelo corredor que estará à sua frente." Paula obedece.
A casa toda tem uma decoração pesada, com quadros a óleo de boa procedência emoldurados em dourado, esculturas antigas de bronze e mármore, móveis comprados em antiquários, cortinas de veludo verde-garrafa e piso de tábua corrida. Novamente o sistema de som funciona: "Entre no quarto no final do corredor." Paula abre a porta do quarto decorado em estilo francês e uma imensa cama de madeira de lei com dossel em madeira e voile colocada numa elevação do piso. Na cama há uma cobertura de pele branca e macia e Paula vê pulseiras e tornozeleiras de couro e uma venda para os olhos em veludo negro. "Dispa-se totalmente, mantendo apenas seus sapatos. Coloque as tornozeleiras de modo a que fiquem confortáveis, sem lhe apertar. Faça o mesmo com as pulseiras. Vende seus olhos e ajoelhe-se na cama, de costas para a porta." As instruções chegam de modo pausado e calmo, a entonação é de pedido e não de ordem. Há uma carga forte de doçura na voz que a instrui.
Paula fica parada em frente à grande cama. O quarto de dimensões exageradas tem uma janela que está fechada com venezianas de madeira e a cremalheira ostenta um grande cadeado fechado. Seu olhar percorre as paredes que possuem telas que parecem-se com réplicas dos quadros de Turner, com o motivo preferido do pintor: tempestades no mar. Há pelo menos três Tabriz e dois Kashan adornando o piso de madeira, que ela tenha reconhecido. Seu apartamento inteiro caberia dentro deste quarto. Devagar ela retira o casaco e o deixa sobre uma poltrona antiga, forrada de adamascado em tons de bordô e creme. Abre o zíper da saia preta e a deixa cair, revelando a calcinha de algodão branco, que mais parece com um biquini comportado. Desabotoa a blusa de seda branca e a retira, deixando aparecer o meia-taça branco de algodão. Arruma cuidadosamente suas roupas na poltrona e dirige-se para a cama.
Senta-se na beirada e ajusta as tornozeleiras de couro em suas pernas de dançarina. Estica a perna esquerda para cima e observa a linha torneada arrematada pelo escarpin preto de salto 9,5. Ela sabe que suas pernas são bonitas e ficam mais desejáveis com saltos muito altos. Coloca as pulseiras e abre seu sutiã, deixando os seios à mostra. Pega a venda e a experimenta sobre os olhos. Quando der o nó, não conseguirá mais ver nada. A voz de seu anfitrião se faz ouvir novamente nos alto-falantes: "Eu lhe pedi que se despisse totalmente. Você ainda tem uma peça de roupa." A doçura do pedido vem num sussurro, como se ele lhe falasse ao ouvido. Paula num sobressalto instintivamente cobre os seios com os braços e vira-se para trás. Não há ninguém. "Não se assuste, não lhe farei mal e também não farei nada que você não queira. Confie e tire a peça que falta." Quase que em transe, ela obedece e fica completamente nua. "Agora vá para a cama e se posicione da maneira que sugeri. Depois que amarrar a venda, coloque seus braços para trás e espere." Paula faz tudo o que o homem diz e se posiciona ajoelhada na pele branca com a venda sobre os olhos e os braços para trás. O tempo parece parar. Ela ainda não conseguiu decifrar de onde conhece a voz de seu interlocutor.
Preludio e "liebestod" de Tristão e Isolda é a música que preenche o silêncio do quarto. Paula percebe que as luzes foram diminuídas na intensidade. Um perfume suave e agradável de rosas se faz sentir. Permanece imóvel com o coração acelerado e sua respiração quase que suspensa. Estranhamente não sente medo, mas ansiedade. Continua intrigada com a identidade do seu interlocutor - ficou óbvio que ele a conhece, talvez mais do que ela imagina. A memória auditiva a está traindo, pois ela não consegue se lembrar da voz ouvida, mas a modulação e cadência parece-se com a mesma de um antigo amor. Não pode ser ele - ela está imaginando coisas. No vasculhar da memória, Paula não percebe a entrada do seu anfitrião. Seus cabelos longos são afastados da nuca por uma mão quente, com uma delicadeza ímpar. Algo a toca nas costas: um toque macio, como se uma flor lhe fosse passada na coluna, do pescoço em direção ao cóccix. Arrepia-se e empina os seios. O que ela julga ser um flor é passada levemente sobre o mamilo direito, fazendo ficar mais duro, e logo a seguir no mamilo esquerdo, causando o mesmo efeito. O toque continua descendo pelo abdomen até chegar à vulva.
Paula sente o cheiro da pele do anfitrião. Não há perfume algum, apenas o cheiro da pele. A memória olfativa avisa que este cheiro é conhecido e profundamente excitante e agradável para Paula. Vendada, os outros sentidos parecem aflorar com mais intensidade: o hálito com leve odor de whisky, a maneira suave como ele a toca com a flor, a música escolhida - que segundo a lenda, foi escrita por Wagner quando estava na cama com sua amante - e finalmente o paladar: a língua quente a penetra nos lábios e o sabor do beijo roubado é o mesmo da entrega por amor. Delicadamente, seu anfitrião prende as pulseiras às tornozeleiras, impossibilitando qualquer movimento dela e lentamente a deita de bruços sobre o cobertor de pele.
Os lábios percorrem seu pescoço, com beijos suaves e, vez ou outra, a língua perscruta o sabor de sua pele. As mãos poderosamente grandes e quentes seguram seus ombros e descem por sua pele alva em direção à cintura e ancas e arrancam um suspiro de Paula. As mãos continuam seu passeio pelo corpo dela: bunda, vulva, coxas, panturrilhas. Ele retira os sapatos dela e massageia a planta dos pés, relaxando a eventual tensão que ela possa estar sentindo. As mãos voltam a percorrer seu corpo, desta vez ousando mais e tocando os grandes lábios e o clitóris. Paula está excitada e seu anfitrião pode constatar ao tocá-la. A vulva molhada é um convite. Ele a penetra habilmente com um dedo e massageia seu clitóris com os outros, enquanto beija seu pescoço. A excitação de Paula é crescente, porém a imobilidade não a deixa retribuir como gostaria.
Seu anfitrião é um Dominador. Não dá chance para que ela se manifeste: nem para o bem, nem para o mal. Paula percebe-se como posse - objeto de desejo e prazer de um homem envolto em mistério. Conhece-lhe o cheiro, lembra do beijo, mas é algo tão antigo na memória que ela não faz idéia a quem pertence. Arrisca uma pergunta, num sussurro: "Como você chegou até meu telefone?" A resposta é uma estocada do dedo em sua vagina, ao mesmo tempo que os dentes são cravados no pescoço, num misto de mordida e chupão que a faz arrepiar-se e sentir dor. Decide calar-se por prudência. "Silêncio" - ele sussurra em sua orelha. É a mesma voz grave da ligação e do sistema de som - "Não responderei às suas perguntas. Sinta a música e as minhas carícias. Entregue-se."
O tom usado é imperativo, não em forma de súplica, mas vem em forma ordem. Paula é independente em suas relações e não se conforma de ser usada como uma boneca inflável. A imobilidade e o tamanho do homem a deixam em posição inferior e ela não tolera ser manipulada dessa forma. Apesar das lembranças dos cheiros, da maneira de tocar, do beijo serem as mais agradáveis, ela não se sente segura, por precaução, não reage como faria em outra situação, mas também não se entrega. As carícias do anfitrião continuam percorrendo seu corpo: mãos, lábios, língua a devoram como se fosse a primeira vez que o homem possuísse uma mulher. Explora as diferentes texturas da pele, dos pelos, das mucosas com as mãos e com a boca. Prova cada pedaço dela como se fosse um banquete servido a quem falta comida. Paula aos poucos cede às carícias, pois percebe que apesar do homem ser dominador, não é violento se não for contrariado.
Ele volta a lhe beijar a nuca e inspira profundamente na inserção do pescoço com o ombro. Ali, onde o cheiro da pessoa é o mais real, mais animal, aquele lugar onde descobrimos quem nos excita verdadeiramente. Detem-se por um bom tempo sentindo o perfume dela, enquanto as mãos voltam a percorrer as laterais do corpo, como se moldasse uma escultura em barro, demarcando a cintura e as ancas. As mãos seguem para o abdomen e sobem em direção aos seios, manipulando os mamilos e fazendo-os ficarem arrepiados. Paula sente o falo encaixar-se entre suas pernas e roçar seu clitóris. Geme baixinho. Sua orelha é invadida pela língua quente e grossa ao mesmo tempo que o falo cumpre seu trajeto vulva adentro. Primeiro devagar, num ritmo onde ela sente cada milímetro entrar e sair e os movimentos vão num crescendo de velocidade e voltam a ficar devagar novamente; uma das mãos aperta os seios enquanto a outra toca o clitóris. Paula goza como há muito tempo não acontecia. Havia somente um homem que a fez gozar dessa maneira, mas isso foi há muito tempo.
O homem satisfaz seus instintos e descansa seu corpo suado e pesado sobre Paula. Ela tem dificuldade para respirar e a posição em que se encontra amarrada começa a deixar-lhe com as mãos dormentes. Tenta manter-se em silêncio, porém outro gemido lhe escapa, fazendo com o homem se levante, para alívio dela. Ele a desamarra e, sem dizer palavra, desaparece. Paula se dá conta de que está só e abaixa a venda. "Atrás da cama você encontrará um banheiro onde poderá se lavar. Você tem vinte minutos para voltar para a cama. Ainda não terminei com você." A voz vem novamente do sistema de som. Ela sente os joelhos e as coxas doloridas pelo tempo em que passou na mesma posição e lentamente vai até o banheiro.
Mármore branco no piso, paredes e bancadas. Próximo à janela uma imensa hidromassagem com um banho quente preparado com pétalas de rosas laranjas e velas cor de rosa ao redor da banheira. A música volta ao sistema de som e Paula reconhece o Adágio do Concerto de Aranjuez. Lava-se no chuveiro rapidamente e entra na banheira - a água quente e o perfume suave dos sais de banho a relaxam totalmente. Fecha os olhos e se deixa levar pela música. Num quase adormecer tenta buscar na memória a voz do homem que ela amou, mas não é a mesma voz que falou com ela ao telefone, pelo sistema de som ou no seu ouvido. Abre os olhos e vê no relógio antigo afixado na parede que já se passaram quinze minutos dos vinte que seu anfitrião lhe concedeu. Sai da banheira e seca-se com uma imensa toalha negra aveludada e coloca o roupão de seda vermelho com uma fênix bordada nas costas.
Ao entrar novamente no quarto vê ao lado da cama um balde com gelo onde repousa uma garrafa de Veuve Cliquot Ponsardin Rosé e duas flutes de pés em arabesco de vidro formando uma clave de sol. Sobre a coberta de pele há uma bandeja com canapés finos de sabores variados e uma braçada de tulipas amarelas. Paula começa a perceber que nada é gratuito, as músicas escolhidas com cuidado, a cor das pétalas de rosa na banheira, a cor das velas, e agora, as tulipas. Seu anfitrião passa mensagens subliminares através dos detalhes. Ela agradece em voz alta o buquê e o repasto.
"Sirva as duas flutes e desamarre o cinto do roupão. Não precisa colocar a venda. Fique confortável na cama." Na voz há ternura e firmeza e Paula já não se sente ameaçada como no primeiro contato físico. Senta-se na beirada da cama e serve o champagne. Pega um canapé de salmão e sente a massa leve e crocante desmanchar em sua boca: a iguaria é de alta qualidade. A porta se abre lentamente e seu anfitrião aparece num roupão negro de seda e um gorro feito do mesmo tecido que somente deixa ver os olhos e a boca. O homem tem uma compleição robusta, de quem praticou esportes na juventude. Paula se impressiona com o tamanho das mãos dele, e observa que são mãos bem cuidadas, sem exageros. Estica o braço e alcança-lhe a flute. "Espero que tenha gostado do banho que mandei preparar para você e dos canapés. O champagne, esse eu sei que é o seu preferido." O homem se vira de costas e ela vê que o desenho nas costas do roupão não é uma fênix como a dela e sim um dragão chinês multicolorido - o desenho é ressaltado pelo fundo negro da seda.
"Bonito dragão" comenta baixinho Paula. "É o meu amuleto de boa sorte, assim como a sua fênix. Tenho ambos gravados no corpo." responde calmamente. "Você verá ambos, no momento oportuno."
Ouve-se Le Cigne. O som sai abafado de dentro da bolsa. Paula pega o celular e desta vez reconhece o número. “O que você quer?” pergunta com um tom de voz contrariado. “Paula, largue tudo o que está fazendo. Preciso de você agora!”