"Se podes olhar, vê.
Se podes ver, repara."
A fumaça sobe preguiçosamente do cigarro rumo ao amplo espaço do ar. Branco-azulado fazendo volutas como ondas. Uma tragada e o sabor amargo do tabaco traz lembranças doces. Desta vez não me neguei: disse que amava.
Mas não disse o quanto amava, nem ao menos fiz questão de explicar a boca seca e as mãos úmidas e trêmulas. Sentia-me uma cega. Da mesma cegueira que Saramago descreve como "cegueira branca": não via todo o entorno, não queria ver. A única coisa que importava era a presença dele, o olhar carinhoso, as mãos que me acariciavam. Otimistamente só conseguia ver os prós - não havia como pensar nos contras, quando o coração batia mais forte na companhia do pedaço arrancado. Era como se voltasse a viver, depois de muito tempo em animação suspensa. Ele descrevia as impossibilidades e as suas palavras soavam mais um desafio a ser superado do que propriamente o que ele queria dizer. Assim eu o interpretava: como se me desafiasse com as impossibilidades, num teste para saber se o que eu havia dito tinha valor, se o amor que eu dizia sentir era mesmo verdade. Mal sabia ele...
Os dias passaram, junhos, julhos, agostos infindáveis, luas e mais luas se sucederam. A vida continuou como estava antes, continua tudo igual até agora, só que com um sentimento de desolação: "O amor exige tudo e com pleno direito: eu para com você e você para comigo. No entanto, duvida tão facilmente que eu tenho que viver para mim e para você. Se estivéssemos completamente unidos, nem você nem eu estaríamos nos sentindo tão desolados." Leio e releio a carta de Beethoven, Tresleio e acendo outro cigarro. A fumaça sobe novamente preguiçosa. Branco-azulado, cegueira branca, pétalas roxas: minhas olheiras de vigílias intermináveis a cuidar da velha criança que insiste em brincar quando seria a hora do descanso.
Abro os olhos: terminaram-se os dias cinzentos - o sol brilha aqui dentro. Talvez eu não tenha dito tudo. Haverá tempo para dizer mais.
"... deine Liebe machte mich zum glücklichsten und zum unglücklichsten zugleich... ...ewig dein, ewig mein, ewig unß." - L. v. Beethoven
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